VELHO
- Nei Damo
- 21 de jun. de 2020
- 5 min de leitura
Cheguei – meu Deus do céu! – aos 77 anos de idade. E me conformo, pois que a única maneira de se ter vida longa é esta: ficar velho. A este respeito, concordo com o Luis Fernando Veríssimo, que em uma de suas crônicas, disse: “Em primeiro lugar, queremos agradecer a indústria farmacêutica, que nos mantém de pé...”.
Também quero fazer coro com o Ruy Castro, que numa crônica sobre a velhice, disponível na internet, escreveu: “Melhor idade é a puta que te pariu – a melhor idade é de 18 aos 40 anos.”
Você não fica velho de um dia para o outro, você vai ficando aos pouquinhos. Aliás, desde que você nasceu. Assim mesmo. Dia por dia, momento a momento, tudo comandado pelo DNA.
Você também sabe que ficou velho pelo espelho, mas a prova definitiva é quando os outros, ou os fatos, ficam te lembrando disto.
Estou numa fila de supermercado, com uma garrafa de vinho na mão. Sou o sexto da fila. A moça do caixa olha para mim e exclama:
— O senhor aí, pode passar na frente!
— Não, obrigado! Tenho tempo!
Alguns da fila se oferecem para ceder o lugar...
— Não. Não. Segue a fila. Obrigado. Tenho tempo.
Ao chegar a minha vez, noto que a moça apura a vista no painel onde aparece o total da compra.
— Puta que o pariu, pensei. A desgraçada é míope e me viu lá no fundo da fila. Eu devo estar muito feio na fotografia, mesmo de boné e óculos escuros.
No hospital, ao fazer um checkup de rotina, a atendente me coloca uma pulseira de identificação. Em seguida coloca outra: uma amarela, escrito “Risco de queda”. A primeira vez que vi esta pulseira, numa simples operação de catarata, me imaginei caminhando pelos corredores me apoiando pelas paredes.
Na rodoviária, onde vou deixar a mala no Malex, aquele sistema onde você mesmo tranca a porta e fica com a chave, para posterior resgate da mala, aconteceu o seguinte diálogo.
— O senhor pode comprar a ficha comigo ou na maquininha, com cartão de crédito.
— Vou na maquininha.
De pronto, a moça pergunta:
— Precisa de ajuda?
Faço que não escuto, introduzo o cartão, digito o código, e a máquina expele uma ficha.
— O senhor sabe como funciona o Malex?
— Sei.
Tem certeza?
— Sim.
Aí ela lança uma ameaça:
— Se errar o procedimento, o armário não devolve a ficha. Tem certeza que não quer ajuda?
— Tenho certeza. Digo a ela que já fiz isto antes, enquanto tento achar um sorriso de extrema sabedoria. Penso também em achar algumas respostas para a moça.
— Moça, eu sei fazer... tenho até o segundo grau...
— Moça, eu voltei ontem da Rússia, não falo russo e me virei bem por lá.
— Moça, sabia que eu sou campeão de Evil Sudoku?
Tudo isto não incomoda, porque são gentilezas. O que incomoda um pouco, mas também não passa de um incômodo passageiro, é ser tratado como bebê em laboratórios e hospitais.
— Isso! Agora bota o bracinho aqui para tirar sangue.
— Pronto! Pode abrir a mãozinha.
Li, não lembro onde, o ocorrido com um general num exame destes.
— Isto! Agora levanta a perninha.
— Minha senhora! General não tem perninha. General, minha senhora, General tem pernas!
Não sei o nome do General, mas virei fã.
O problema é que tratando-nos como bebês, fica a percepção de que, tal como os bebês, somos incapazes.
— Você está dirigindo?
— Sim.
E nem comento que na semana passada dirigi 1.114 quilômetros em três dias. Melhor ser lacônico e não contestar, porque afinal, você pode estar mesmo perto de não dirigir tanto quanto hoje.
Nas catacumbas de Paris, numa parte aberta à visitação, existe uma seção somente de ossos de crianças. A visão de ossos pequenos faz aflorar sentimentos de tristeza e perplexidade. Não há como ficar indiferente e, não há como não ver rostos de crianças naqueles pequenos crânios. Perguntei a um amigo que morou lá, qual o propósito daquela seção.
— Dizem que é para as pessoas pensarem na vida, e aproveitar bem os dias: Carpem diem, como diziam os romanos do tempo de Cristo.
Ficar velho também faz lembrar, ainda segundo a crônica do Ruy Castro, que a “melhor idade” é “algo entre os 60 anos e a proximidade da morte”.
Pois é... O dia vai chegar...Bom seria se tivesse uma negociação, algo como uma recompensa, como na delação premiada.
Um anjo da guarda desce ao lado do cara.
— E daí? Pronto?
— Sim. Como está a minha ficha?
— Humm... deixo ver...
E o anjo baixa na sua frente um computador virtual.
— Humm... tudo bem. Todos os seus pecados foram zerados. Não quer fazer uma delação premiada?
— Não. Já fiz duas e estou bem assim. Vamos em frente.
— Certo. Lá em cima você vai enfrentar uma fila, mas não se incomode, que é muito menor que a fila do SUS. Outra coisa: lá acabou a mamata – lá não tem esta coisa de furar fila porque é da melhor idade.
— Mais uma coisa ainda, que eu sou anjo e leio pensamento. Você tem razão: melhor idade é a puta que te pariu. O anjo levanta os olhos para cima e diz baixinho: desculpe!
Em seguida o anjo escolhe no teclado virtual a opção “infarto fulminante” e, dizendo “até mais”, tecla “enter”. O cara desaba.
Um outro anjo desce ao lado de outro cara.
— E daí? Pronto para subir?
— Bem... Ainda tenho uns projetos... Ouvi falar numa tal de delação premiada...
— Existe e está em vigor. Basta apontar alguém que tenha pecado e seguir o protocolo.
— Bem... Tem a Mariazinha. Anda pulando a cerca sem o marido...
— Sei, sei. Só que para isto o prêmio é muito baixo, coisa de semanas a mais de vida, desde que Ele alterou a classificação de adultério de pecado para pecadilho...
— Ele? Ele quem?
— Ele!
E o anjo, com o indicador em riste na altura do peito, apontou o dedo para cima.
— Ah, sim. Entendi. Ele! Mas como funciona este negócio de delação?
— Ele priorizou a corrupção na política. Você pega o valor roubado e multiplica pelo cargo ocupado e, deste valor, sai o tempo concedido. Quanto ao cargo, se for vereador você ganha mais dois meses de vida. Prefeito, seis meses; deputado estadual, um ano; federal, dois anos; presidente da câmara, três anos; senado, cinco anos. Presidente do Brasil e juízes de alguns tribunais, a combinar. Tem que provar. Você pede um tempo para coletar provas e este tempo é descontado depois, do tempo de vida concedido.
— Tem negociação?
— Tem. Ele topa negociar. Aliás, acho até que Ele curte uma negociação. Outra coisa: aproveite, porque este negócio só tem no Brasil.
— Interessante. E por que só no Brasil?
E o anjo, com a mão em concha no ouvido do cara, diz baixinho:
— Corre à boca pequena, entre os anjos e os arcanjos, que Ele é brasileiro.
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