O OUTRO LADO
- Nei Damo
- 15 de abr. de 2020
- 4 min de leitura
Lembro-me bem da primeira vez em que nos encontramos. Foi no campinho onde tua turma jogava futebol nos sábados à tarde, e eu algumas vezes ficava olhando.
Num destes sábados faltou um para completar o time, e alguém me perguntou se eu queria jogar. Entrei contente e fiquei pelo meio do campo, porque eu era um pouco mais que um adolescente. Magro. E tua turma estava entre os vinte e vinte e cinco anos.
Ficamos no mesmo lado. O goleiro te passou a bola, você dominou, driblou um, avançou, cruzou o meio do campo e lançou para mim, que corria na mesma direção, pela direita. Amorteci a bola e a levei livre por uns dez metros, quando vislumbrei tua entrada pela esquerda. Usei toda minha força, e consegui erguer a bola exatamente na tua frente, e num sem-pulo você encheu o pé. Gol! Golaço!
Você correu para mim e me deu um abraço! Que abraço, cara. Parecia que tínhamos salvado a humanidade. E assim foi que começou nossa amizade.
Depois do jogo, sem nos conhecermos e sem saber que morávamos na mesma rua, fomos caminhando e conversando como se fôssemos velhos amigos. Com o tempo e, apesar de ser bem mais novo, fui me enturmando, primeiro no futebol dos sábados, e depois, quando fiz 18, me lembro, comecei a participar do bar com a tua turma. Quando não chegávamos juntos, alguém da turma se adiantava e perguntava, entre risos:
— E aí Vinicius, cadê o Toquinho? , ou
— E aí Toquinho, cadê o Vinicius?
Evidentemente que não era por algum dote musical, que todos sabiam não existir, mas sim pela nossa diferença de idade.
Depois de muito tempo de uma firme e alegre amizade, você começou a frequentar um Centro Espírita, e foi depois que fizemos aquela brincadeira com o Carlinhos, se não me falha a memória.
O Carlinhos tinha um medo mórbido de ser enterrado vivo, e, sem a presença dele, depois de uns tragos, combinamos refazer uma brincadeira que alguns de nós vimos na televisão, e que ele, nós sabíamos, não tinha visto. Se não me engano, esta história foi contada pelo Chico Buarque na TV. Copiamos o início e o final, e fizemos um teatro no meio.
Num sábado, depois do futebol e muitas cervejas, induzimos o Carlinhos a falar do seu medo. Depois de algumas falas, se sugeriu que se acontecesse a morte, colocaríamos um celular na sua mão com um número programado de alguém da turma, já pronto para ser chamado. Assim, se ele acordasse vivo no caixão, bastaria premer o botão de chamada e alguém atenderia.
Mais algumas cervejas e um outro da turma levantou uma dúvida:
— Tem sinal no cemitério?
Já caindo a noite, fomos até o jazigo da família do Carlinhos. Parecia que ele, talvez que pelo teor alcoólico, estava levando a sério o teste.
— Vamos ver. O sinal é forte.
— Mas e aí dentro?, perguntou um.
— Coloque o celular no chão e vamos cobrir o aparelho com entulho.
No escuro, com as lâmpadas dos celulares, catamos restos de tijolos, brita, madeira, galhos e sujeira e fizemos um montinho de uns 30 centímetros de altura.
— Aí está bom. Agora alguém chama.
— Chamou! O sinal funciona dentro do jazigo.
E voltamos para o bar, sem antes ligar pedindo a saideira e alguns petiscos.
No outro sábado, depois de cervejas e cervejas, se retomou o assunto “vivo no caixão”.
— Então, Carlinhos. Você foi enterrado e acorda naquela escuridão. Sente na mão o celular que deixamos e o dedo num botão. Com o coração aos pulos, você aperta o botão e escuta o celular chamar. Eu que atendo:
— Carlinhos! Maravilha! Você está vivo! Olha! Nós vamos tomar mais uma saideira e já vamos te tirar daí!
Foi uma gargalhada geral, inclusive do Carlinhos, que nunca mais falou sobre o assunto, acho que curado da morbidez.
Tua frequência no Centro Espírita passou a ser semanal, e num dia te perguntei:
— O que você busca no Centro?
— Quero saber das coisas. Quero saber como é do outro lado. Como sou mais velho que você, eu me vou antes, e quero achar um jeito de te falar como é o outro lado.
— Bem, só me fale do outro lado se tiver mulher e cerveja. Sabe aquela morena linda da Firma?
— Sei. Beleza de mulher. Simpática.
— Pois é. Tôco.
— Tôco? Que é isto?
— Tôco. Tô comendo. Esqueceu? Tôco, jaco, voco!
— Ah! O palavreado criado no jornal O Pasquim, que eu comprava, lia e dava para você ler. E ainda dizia: leia tudo, de cabo a rabo.
— Isto.
— Mas cara! E o perigo? O marido dela é um sujeito que não tem boa fama.
— Pois é. Aí ele descobre, me dá um tiro e eu morro antes de você. Ou um raio cai na minha cabeça. Ou um caminhão passa por cima de mim. Pronto. Morro antes de você!
— Nada! Você é muito mais novo que eu. Eu morro antes, e vou saber como me comunicar desde o outro lado.
E assim ficamos: você dizendo que morria antes e eu contestando, até que eu parei, e comecei a aventar a possibilidade de ir contigo ao Centro Espírita. Ver de perto as coisas. Talvez fosse bom, mas em nenhum momento senti que este fosse um desejo teu.
Não vi o carro desgovernado. Só vi depois a ambulância e o pessoal do hospital, no que me parecia um centro cirúrgico. Eu devia ter ido ao Centro Espírita contigo.
Mas e agora, meu amigo, como falar contigo? Como, se fui eu que morri primeiro?
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