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O OITAVO DIA - Parte Final

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 28 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

A paranoia começou:

— O cara era colega daquela aluna que o professor falou.

— Que colega que nada. É um empresário.

— Acho que o cara era amante da aluna que o professor falou.

— Pare de inventar coisa. A empresa não tem nada a ver com a faculdade. A empresa é tempo integral.

— E o que você me diz das noites? Hem? Hem? Uma festinha aqui, um churrasquinho ali... E a tosse, hem, hem? Assim, com o cara virando pro lado...

— A tosse? Somente educação. Um cavalheiro. Só isso. Você não me convence e fim de papo!

Ganhou a racionalidade, fazendo sumir a paranoia. Ainda bem.

O terceiro dia passou e eu iria para o quarto dia do dia zero, o intervalo perigoso, onde, até o sétimo dia, poderia aparecer os sintomas. Febre, tosse seca, prostração intensa e falta de ar.

Mudamos, eu e minha mulher, para o apartamento da praia.

O quarto dia começou bem, com sol, poucas pessoas no condomínio e muito espaço livre e bom para caminhar. E nestas caminhadas, sem televisão, rádio e celular, é que a mente divaga à vontade, no tempo e no espaço.

Com tanta notícia ruim, inevitável não pensar na morte. Já perdi parentes e amigos, e destes, dois casos me vem à mente: minha mãe e meu amigo Daniel.

De minha mãe, que morreu do coração, disse o médico cardiologista, e também espírita, que a acompanhava:

— Em toda a minha vida de cardiologista, só vi duas pessoas que conseguiram prolongar tanto a vida, apenas com a força do pensamento. A mãe de vocês foi uma delas.

Minha mãe tinha o “dedo verde”. Sua horta e seu jardim eram esplendorosos. Meu irmão conta que determinada espécie de flor não vingava no jardim, apesar da dedicação de minha mãe, até que alguém lhe teria dito:

— Para que a muda cresça, ela tem que ser uma muda roubada.

Pois minha mãe roubou algumas mudas e as plantou. Vingaram viçosamente.

Do Daniel, recebi dele um telefonema no fixo, num domingo.

— E aí, Nei. Tudo bem?

— Oi Daniel! Bom ouvir você.

— Tenho duas notícias para te dar. Uma boa e uma ruim. A boa é que vou casar com a Vania e quero vocês aqui. A ruim é que estou com câncer em metástase.

Que tal? Este era o Daniel. Eu costumava dizer a ele que sua racionalidade me irritava, no que ele sempre me respondia rindo:

— Depois que uma coisa toma um rumo inevitável, nada mais vai mudar isto. Veja o que você pode fazer dali para frente e esqueça qualquer sentimento: pavor, angústia, medo, desespero, seja o que for.

Falava e aplicava o que dizia. Ele lutou como pode para prolongar a vida, ao mesmo tempo em que se preparava para a viagem derradeira. Escolheu a cremação e, na pesquisa de preços que ele estava fazendo, ele ria, dizendo que estava levando em conta o custo/benefício. Escolheu para seu caixão um caixão de indigente.

Estive com ele várias vezes até uns dois dias antes da morte, no hospital. Lá, notei que sua filha segurava sua mão, com ele inconsciente pelos remédios administrados. Quando sua filha saiu, peguei sua mão por uns instantes. Larguei em seguida, porque me veio um pensamento que ele iria me dizer:

— Estou suando. Largue da minha mão, seu viado.

Em seu velório falaram várias pessoas, com a plateia se alternando entre lágrimas e risos, quando não risadas. O último a falar foi um seu amigo do sindicato dos engenheiros. Começou dizendo que nunca vira no Daniel qualquer ação não pensada ou atribulada e, sempre com uma mão pousada sobre as mãos entrelaçadas no Daniel, finalizou dizendo:

— Até breve, amigo.

Em minhas viagens de trabalho em carro alugado, quando sozinho, de repente eu me pegava assobiando alguma música, e lembro-me de algumas: O Guarani, que eu escutava desde antigamente, na Voz do Brasil, e uma que demorei a identificar, e que finalmente a reconheci de imediato quando casualmente escutei ‘Non, Je Ne Regrette Riem’, na voz de Edith Piaf.

Agora, nestes tempos de sofrimento, sem premeditação, surpreendo-me assobiando um trecho de uma ópera de Verdi, ‘Va, Pensiero’. Não foi difícil achar a conexão do meu assobio com a tragédia do avião da Chapecoense em Medellin.

Quando da cerimônia no estádio Índio Condá, com Chapecó sob uma chuva torrencial, com todas as urnas funerárias enfileiradas, a banda militar tocou Va Pensiero. Dias depois, escrevi no grupo da família um texto, onde em seu final, eu dizia que quem escolheu a ária Va Pensiero, sabia por que a escolheu. Va Pensiero expressa o sofrimento do povo italiano, que é o mesmo sofrimento daquela tarde chuvosa, e que é a mesma dor e sofrimento que se abaterá sobre o Brasil.

E nasceu com sol o quinto dia a partir do dia zero. Pensei e enfiei cabeça adentro que todos os dias seriam assim, até o oitavo dia.

Uma dúvida me assaltava: deveria eu ligar para o meu amigo geólogo? Não liguei, pensando que se assim eu fizesse, eu iria transmitir dúvidas, e não ligando, eu iria poupá-lo de se preocupar com seus pais e mulher.

Nas caminhadas pelo sol do condomínio, nos dias que antecederam o oitavo dia, raras vezes eu assobiava Non, Je Ne Regrette Riem, O Guarani, ou A Casa, de Vinicius e Toquinho, como acontecia sempre. Quando me dava conta, era o Va Pensiero que chegava aos meus ouvidos.

Na noite do sétimo dia, botei na geladeira um vinho de trezentos reais que eu havia ganhado de presente.

Alvíssaras! Raiou o oitavo dia.

À noite, li na Bíblia o Gênesis 7, que diz que Noé, com a idade de 600 anos, escapou do dilúvio em sua arca, flutuando por 40 dias e 40 noites. O bom deste tempo é a longevidade, porque Matusalém, o homem mais velho que já existiu - vejam só - nem morreu de velho. Ele morreu, pasmem, justamente porque não estando na arca, se afogou no dilúvio.

Após sair da arca, Noé plantou uma videira, e com a primeira colheita fez vinho. Isolou-se em sua tenda, embriagou-se, e se alegrou e dançou sem roupas, comemorando o quadragésimo dia.

Eu não saí de casa para plantar uma videira, não dancei e nem fiquei pelado. Apenas peguei um saca-rolhas e tomei, na noite do oitavo dia, todo o vinho de trezentos reais, assobiando Non Je Ne Regrette Riem.

 
 
 

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