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O OITAVO DIA - 1ª Parte

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 27 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

Para quem não me conhece, digo que sou engenheiro civil e trabalho na produção e qualidade de agregados para a construção civil, o que significa dizer que estou dentro de pedreiras, britagens e laboratórios há - Meu Deus do céu - cinquenta anos.

Três semanas antes de Santa Catarina ser declarada com transmissão comunitária nesta pandemia, eu estabeleci um plano de viagens para arregimentar trabalhos, já anteriormente agendados, que pudessem ocupar meu tempo no isolamento que fatalmente viria.

Saí de Florianópolis às 05:20h de uma segunda-feira e antes das 08:00h eu estava reunido com empresários, em Belo Horizonte, para análise de uma planta de britagem em calcário de 350 toneladas por hora. Na terça-feira saí de Belo Horizonte às 06:30h e às 13:00h eu estava num ônibus em Curitiba com destino a Guarapuava, no centro-sul do Paraná. Retornei na sexta-feira para Florianópolis e na segunda-feira peguei um voo para Chapecó, de onde, em carro alugado, me dirigi para Francisco Beltrão, no sudoeste paranaense.

A viagem de carro até Beltrão, uma cidade que eu não via há alguns anos, foi uma viagem de saudosas lembranças, e rever o altiplano catarinense entre Saltinho e Campoerê, salpicado de capões, foi muito bom. No retorno, para não perder o hábito, coletei o pó-de-pedra de uma pedreira abandonada.

Outro voo, e voltei na sexta-feira para minha morada em Florianópolis. Na segunda-feira fui para Tubarão, no sul do Estado, ao encontro de um amigo geólogo para uma reunião numa empresa de construção civil, com o objetivo de projetar e implantar pedreira e britagem.

Voltei no carro do amigo geólogo desde Tubarão até Florianópolis na mesma segunda-feira. Eram passageiros do carro, além de nós dois, a jovem mulher do meu amigo, portadora de diabetes tipo 1, e os pais do meu amigo, ambos com mais de 80 anos.

Tudo isto posto, aqui começa o principal relato que me inspirou a escrever esta crônica, que chamei de “O Oitavo Dia”.

Na própria segunda-feira da volta, ao ligar a televisão, escutei que meu estado, Santa Catarina, havia sido declarado com “transmissão comunitária”, com epicentro – vejam só – em Tubarão!

— Djsus Christ, diria um americano.

— Meu padim Padre Ciço, diria um nordestino.

E eu? De início fiquei mudo, mas depois consegui balbuciar:

— Puta que o pariu!

Estatisticamente, ponderei, é muito pequena a chance de eu ter cruzado com alguém infectado, em cinco horas que fiquei na região.

— Zero vírgula zero alguma coisa...

Na medida em que as horas iam passando eu ia puxando a brasa para o meu lado, aumentando os zeros.

Minha chance de ter sido infectado?

— Zero vírgula zero zero alguma coisa.

Me contentei quando fixei um número na minha cabeça:

— Zero vírgula zero zero zero zero zero um!

Mas eu tinha mais um problema.

A reunião foi feita com dois geólogos, um técnico em mineração, um engenheiro civil e três pessoas da direção da empresa, e quando a mesma terminou, apresentou-se ao grupo um professor da faculdade local, que sorrindo, assim o fez:

— Boa tarde pessoal, sou o fulano de tal e não vou dar a mão para ninguém, porque o pai de uma aluna foi diagnosticado com Corona.

— Pensei: Beleza. O professor está certo. O negócio é este mesmo. Se precaver. Só temos agora que manter a distância de um metro. Acho melhor dois metros, certo?

E fomos todos para o campo visitar o local da futura instalação de britagem, com o professor e o dono da empresa no carro da frente.

Na despedida o professor não mais estava no grupo, e eu me despedi do dono da empresa com um aperto de mão.

Ao entrar no carro, caiu a ficha. O professor foi à campo com o dono, e eu apertei a mão do dono.

Viemos até Florianópolis lavando as mãos em todos os postos de gasolina da BR-101.

Mas eu tinha um segundo problema.

Uma última reunião deste périplo numa britagem em Balneário Camboriú, com uma pessoa que viria de Curitiba, no dia seguinte.

Passei mensagem para os quatro que iriam se reunir comigo:

— Vou chegar aí 11:00h. Não vamos apertar as mãos e temos que manter a distância de no mínimo um metro. Apenas precaução. Nada demais, mas levei um susto ontem em Tubarão.

Tudo correu bem e com um momento de descontração, quando o operador da britagem me cumprimentou com o pé, como nos vídeos das pessoas se cumprimentando com os pés ou com os cotovelos.

Eu estava no segundo dia do dia zero, e como agora eu estava perto da minha filha médica, me veio uma tentação de falar pessoalmente com ela. Resolvi ligar e relatei tim-tim por tim- tim tudo que aconteceu em Tubarão.

— Pai, não se preocupe. Está tudo muito no início.

— E como funciona nos próximos dias?

— Os primeiros sintomas acontecem entre o quarto e o sétimo dia a partir do contato. Mas não esquenta. Vá pra casa e fique tranquilo.

Antes de dormir no segundo dia, me lembrei de um detalhe que me fez sentir que eu estava com um terceiro problema.

E qual era o terceiro problema? A paranoia.

Na ida à campo em Tubarão, estávamos no segundo carro e, na condução do veículo, um membro da diretoria. Logo ao entrar em movimento, notei que ele tossia baixinho, virando o rosto. Não lembro direito, mas isto durou, penso eu, uns dez minutos.

Foi o que bastou para se instalar no terceiro dia do dia zero, dentro de mim, um duelo: paranoia versus racionalidade.


(Continua)

 
 
 

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