MEUS PRIMOS (1)
- Nei Damo
- 22 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Em Chapecó, num determinado ano da década de 80, um empresário do ramo de automóveis resolveu vender motos por consórcios. Vendeu às pampas e se dizia que em Chapecó, "moto era que nem cu, todo mundo tinha".
Pronto. Nunca na minha vida imaginei que em algum dia eu escreveria esta palavrinha de duas letras, mas isto foi necessário para o que vai escrito adiante.
E também, parece que tudo fica liberado depois que a USP, num evento denominado "Semana da Diversidade", programou, para o dia 18 de agosto de 2018, quarta-feira, das 14:00 às 19:00 horas, uma "Oficina da Siririca". Sério. Se duvidar, é só buscar na internet.
Juro que pensei no Jornal Nacional daquele dia, com o Willian Bonner, circunspecto e com a voz empostada:
— Na quarta-feira dia 18, estará em curso, na Universidade de São Paulo, das catorze às dezenove horas, a Oficina da Siririca. Procurada pela reportagem, a direção do evento não informou se haverá demonstrações ou aulas práticas para o público... Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump...
E chegamos ao meu primo primogênito, Elvo Benito Damo, com o perdão do cacófato. Ele fazia o ginasial nos anos 60 quando foi lançado na cidade um concurso cujo tema era a fome. A apresentação dos postulantes ao prêmio era livre.
Meu primo desenhou um cu tapado por uma teia de aranha, e fez chegar seu trabalho artístico até a comissão julgadora. Fez sucesso e arrancava risos, mas obviamente não foi premiado, até pela simples razão da dificuldade em explicar aquilo para as freiras do colégio, as mentoras do concurso.
Era assim Chapecó naqueles primórdios, onde a fome já preocupava.
Numa eleição municipal de São Paulo, um rinoceronte chamado Cacareco levou mais de 100.000 votos, talvez o mais importante voto de protesto da história política brasileira. Meu primo não deixou por menos, e lançou a candidatura do "Tuté", um pobre coitado que não conseguia se fazer entender, pois que, mesmo emitindo sons, não pronunciava uma única palavra reconhecível. Claro que também não batia bem da cabeça. Pois um grupo de adolescentes, liderados pelo meu primo, mudou o Tuté como o dia muda para a noite. Deram-lhe banho, fizeram-lhe barba e cabelo e deram-lhe terno, gravata e sapatos. Com um caixote, percorriam a avenida e faziam discursos. O ponto alto era o último discurso, justamente dele, o Tuté. O discurso, que durava uns dez minutos, era levado a sério por alguns, pela maluquice e, com risadas pela maioria. O ponto alto era quando, com o dedo em riste apontando para a prefeitura, o Tuté elevava a voz e esbravejava raivosamente. Outro sucesso.
Do púlpito improvisado, rumavam para o bar, para uma cerveja e um lanche reforçado para o elegante político. Foram dias felizes, pena que transitórios para o pobre Tuté.
Com este feito, e no quesito política, Chapecó só perdia para São Paulo.
A família do meu primo morava numa casa com porão e, perto dali, a minha morava num anexo de um hotel, gerenciado por ambas as famílias. Antes da vinda das meninas, eram onze meninos, seis endiabrados de um lado e cinco de outro, com uma máxima liberdade, porque com o hotel dia e noite, mães não tinham tempo para controlar o que os pimpolhos faziam. Faziam e bordavam.
O porão da casa dos meus primos era circo, banco, teatro e plenário de grandes decisões. Nas sessões de circo havia trapézio, lançamento de facas com um corajoso menino de braços abertos num tablado e os impagáveis palhaços. No banco estavam o xerife, os seguranças, o gerente, o caixa e o cofre. Do lado de fora e na espreita, uma malvada quadrilha com lenços no rosto, planejava o assalto, e esta perigosa operação acontecia pelo menos uma vez por semana.
O teatro era mais complicado por causa da decoreba e dos ensaios, mas algumas peças aconteciam, com cobrança de ingressos. Sim senhor, Chapecó era chique e também tinha teatro. O dinheiro era desenhado cédula por cédula pelo Conde Gatão, designer gráfico, atirador de facas e mágico do circo: Meu primo.
Cartelas do "Seu talão vale um milhão" e bilhetes de loteria funcionavam como Ações, podendo ser trocadas por "dinheiro". O sistema econômico funcionava equilibrado, até que o pai de um menino que frequentava o porão, para ajudá-lo, arrumou um monte de bilhetes e cartelas com um dono de casa lotérica. O menino começou a negociar de todas as formas e bagunçou a economia. A turma aprendeu, na prática, o significado de "inflação".
A Chapecó da nossa adolescência tinha muitas histórias, como aquelas semelhantes narradas por cronistas de outras partes sobre a convivência com sua turma. Mas, uns poucos contam alguma história de zona e, Chapecó, nesta matéria, só perdia para Passo Fundo e Lages, considerando as cidades interioranas. De Passo Fundo, a zona era uma cidade. De Lages, o cronista Sérgio da Costa Ramos, amante da Ilha de Santa Catarina e dos pousos do avião correio de Saint-Exupéry nas praias do Campeche, conta que as "moças de vida fácil", obrigadas a ter carteira do trabalho, anotavam no espaço para a profissão o termo "bailarina", porque a prostituição era proibida no Brasil. Contando assim, desde o início, seriam mais de 5.000. Em consequência, dizia Sergio, Lages tinha o maior corpo de bailarinas do mundo.
A zona de Chapecó era uma vila chamada Céu Azul. Duas casas se destacavam, porque tinham conjuntos com seis ou sete instrumentos. Só não tinham piano, um instrumento musical muito caro para repor, porque todos estavam sujeitos a danos, devido às constantes brigas, com cadeiras, porretes e garrafas voando para todo lado.
Chapecó tinha dois times fortes de futebol, e certa feita, o presidente de um deles foi ao Rio de Janeiro e se encantou com um mulato, de pele mais para o negro, que fazia misérias com uma bola. Usando todas as partes do corpo, não a deixava cair. Foi contratado. Fardado e posto em campo, o homem ficava perdido, não sabendo correr com a bola e nem chutá-la, mirando um companheiro. Isto foi o que se pode chamar de uma legítima "bola fora". As gozações vararam meses, principalmente aquelas que partiam do time adversário.
Mas o homem não voltou ao Rio de Janeiro, ou por falta de opção, ou porque talvez tenha gostado do ambiente da cidade pequena. O que ele tinha de bom no domínio da bola quando sozinho, também tinha no domínio da voz, e virou crooner de uma das casas da zona. Pelo jeito, gostou mesmo da cidade, menos num carnaval onde ficou três dias bêbado, e tocando um bumbo, percorria as ruas poeirentas com uma piazada atrás. Aquela era a sua Escola de Samba, e também a primeira dos meus irmãos e primos. O povo não reclamava do barulho porque entendia a situação: viam, naquela figura incansável, ao vivo, o significado da expressão "a dor de uma saudade".
Num piquenique com algumas mulheres do Céu Azul, na barragem do hoje chamado Bairro Efapi, o destino o chamou para junto dos anjos do céu, afogado nas águas calmas do alagado.
E esta era a Chapecó da adolescência, até a viagem para as capitais onde estavam os vestibulares. Eu fui para Porto Alegre e meu primo para Curitiba, onde hoje ele é um renomado artista plástico, com prêmios nacionais e internacionais.
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