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Conto: LETRA V - DE VIDA

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 9 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura

Maria nasceu. E com Maria nos braços, João pensou: o mesmo rosto sereno e angelical da mana Ritinha, de sete anos antes. Parece menor, e por isto vou te chamar de Pico-pico, meu amor.

— Pico-pico! Vem aqui com o vovô!

— SSim!

— Olhe como o vovô é mágico A moeda vai desaparecer. Diga abracadabra!

— Abacaba!

— Um, dois e... três!

— EEEEEE!

Quando Maria fez três anos, no dia seguinte ao aniversário, João levou Maria até seu escritório, onde se sentaram no sofá e, entre os dois, estavam uma caixinha, um papel de presente e uma fita.

— Pico-pico, abra a caixinha.

— Tem alguma coisa aí dentro?

— Não tem nada, vovô.

— Feche a caixinha, Pico-pico. Agora, enrole a caixinha no papel. Isto. Agora vamos amarrar a caixinha com esta fita azul. Bote o dedinho aí. Apertado. Agora o vovô vai fazer um laço bem bonito com a fita azul. Pode tirar o dedinho. Agora vamos dizer as palavras mágicas. Abracadabra, abracadabra. Agora você, Pico-pico, diga abracadabra, abracadabra.

— Abacadaba, abacadaba...

— Agora, Pico-pico, abra a caixinha bem devagar...

Maria abre a caixinha, e dentro tem uma pulseira. Maria exulta de alegria, e escuta João dizendo que a mana tinha ganhado também uma pulseira quando fez três anos. João coloca a pulseira com um coraçãozinho de ouro e mostra que a pulseira pode ser estendida.

— Veja Pico-pico. Conforme teu bracinho for ficando grande, a pulseira vai abrindo...

Maria se atira num abraço com João e este lhe diz baixinho no ouvido:

— Agora vai mostrar para o papai, a mamãe, a vovó e a mana.

Maria se afasta correndo, e João enxuga disfarçadamente uma lágrima.

Como em todas as casas, a preparação para o primeiro dia da escola foi uma festa e, deste dia até a leitura tatibitate, foi um pulo, porque Mariazinha já dominava as letras com facilidade.

Com as primeiras leituras em livros de histórias infantis, João comprou um brinquedo de criança onde se dispunha de todas as letras em cartões, podendo com elas se formarem palavras.

— Vou te ensinar um jogo muito bom. Preste atenção Pico-pico. Cada um vai colocando uma letra, para formar uma palavra. Quem terminar a palavra perde. Entendeu Pico-pico?

— Entendi vovô.

— Você começa.

A mão da criança vasculha no monte de cartões e puxa um S. A mão do adulto esparrama os cartões e puxa um A e, encostando o A no S, formou SA.

— Agora você.

— Deixo ver, deixo ver...

Se demorando, com um dedinho na boca, Maria pega a letra P e coloca na sequência, formando SAP. A mão do adulto esparrama as letras e puxa um A, um U e um O.

— Droga! Perdi!

João coloca a letra O e forma a palavra SAPO.

— O “O” forma SAPO e termina, e eu perco.

João tira a letra O e coloca a letra A, formando SAPA.

— SAPA é a mulher do sapo. A palavra termina e eu perco.

João tira o A e coloca o U, formando SAPU,

— SAPU! SAPU não existe. Droga! Perdi!

— EEEEEE! De novo vovô! De novo vovô!

Um automóvel roda por uma estrada sem movimento, aparecendo e desaparecendo por entre as árvore, em direção à uma pequena cidade, famosa por bucólicas e agradáveis pousadas. No automóvel, os avós e as netas, Rita e Maria, num presente de aniversário dos dez anos de Maria, agora mais Mariazinha do que Pico-pico.

— Vovô: Vamos lá! Não vale verbo, não vale nome próprio. Não vale diminutivo nem aumentativo. A palavra tem que ter mais do que cinco letras. Quem terminar a palavra perde. Quem primeiro perder três vezes, paga um real a todos os outros. Certo? Quem começa? Tem que começar com uma letra seguida de uma palavra que indique a letra, para não confundir “te” com “vê”, ou “be” com “de”, ou “eme” com “ene”! Quem começa? O sentido é o horário!

— Rita: Eu começo! Pico-pico, o vovô está ganhando muito seguido e hoje você fala antes dele. Não deixe ele ganhar, entendeu?

— Pico-pico: Tá!

— Rita: Entendeu mesmo?

— Pico-pico: Entendiii!

— Rita: Eu começo. Letra S, de Sapato.

— Pico-pico: Letra A, de Aula.

— Vovô: (esperando alguns segundos) Letra L, de Lindo...

— Vovó: Letra S da Rita, letra A da Mariazinha e L do vovô... SAL... SAL... SAL... Eu boto S, de Sapo. Fica SALS... SALS...

— Rita: SALS... SALS... Eu boto I, de Índio, e fica SALSI.

— Pico-pico: SALSI? Ferrei o vovô!! LETRA X!

Em meio a risadas, o vovô falou:

— Pô Pico-pico! Salsicha com xis? Mas tudo bem, pelo entusiasmo. Perdi um ponto. Quando se tem dúvida, se pode duvidar, e a pessoa diz: duvido! E a gente olha no dicionário...

— Rita: No Google...

— Vovô: Isto. Se a palavra existe, ganha quem falou. Se a palavra não existe, ganha quem duvidou.

E a vida seguiu serena e sem nenhum susto, com Mariazinha no apartamento de seus pais, Rita prestes a se mudar com o namorado e João e mulher em sua casa com quintal, onde, aos domingos, a família se reunia para o almoço e risadas.

João e Maria se comunicavam através do joguinho das palavras, aprendido lá na infância, quando Maria era ainda Pico-pico. E sempre era assim, em viva voz no telefone, por mensagens, ou por troca de e-mails no computador.

— Letra N, de Namoro, vovô. O papai não sabe.

— Letra I, de “Isto é mmuito bom”. Ele vai descobrir pelos teus olhos. Releia o Analista de Bagé.

— O vovô disse “I”... ficou então N e I, ficou NI... Eu coloco T, de Tempo... Então fica NIT.

— Eu coloco R, de Rei... Fica NITR... Pense bem aí, Pico. Quer um tempo?

— Não vovô! Eu sou rápida no gatilho. Eu coloco a letra O, de Ontem. Fica então NITRO.

— Sinto muito, Pico, mas eu vou colocar um S, de... Sinto muito!

— ... Droga! Perdi! Fiquei com esperança de um G, para NITROGÊNIO, mas vieste com este S, de NITROSO.

— I win! I win! Yuhúúú

— Nhé nhé nhé nhé…

E sempre, sempre nos diálogos, o início era desta forma: a letra com uma palavra.

— Letra E, de Estudar. Vestibular, vovô Eu preciso estudar e está difícil a concentração. Beijos.

— Letra P, de Perseverança... Leia O Velho e o Mar, do Hemingway.

— Letra C, de Começar, e começo hoje mesmo. Juro.

Maria! Maria! Vovô no hospital! Grita Rita de dentro do carro. Ao chegarem à porta do hospital já encontraram familiares e amigos desolados e, tristonhos, os semblantes diziam tudo. O vovô morreu. Maria não se sustenta e cai aos prantos, de joelhos.

O tempo passou, assim como passaram as fases do luto, mas foi um período difícil para Maria. Das coisas do seu avô, ela ficou com o celular e o colocou junto da caixinha da pulseira, uma lembrança nunca esquecida do aniversário dos três anos de idade. Guardava bem junto de si, na mesinha de cabeceira da cama e, de vez em quando, carregava a bateria do celular.

Em férias da faculdade que estava cursando, Maria resolveu se ocupar com seu quarto e, depois de uma limpeza e recarregar os dois celulares, seu e do avô, sentou-se na cama. Com a caixinha da pulseira nas mãos, que ela abria e fechava vagarosamente, rememorou as passagens melhores de sua vida.

Tomou seu celular e, pensativa, digitou:

— Letra S, de Saudade, vovô...

Uma tontura com uma moleza, que ela nunca tinha sentido, se apoderou de todo seu corpo. Para não cair em frente, só teve um tempo de reação para cair de lado, sobre a cama, com o celular na mão.

Com a irmã em coma por dois dias, na espera de uma volta à consciência, Rita providenciou de trazer para o hospital algo que lhe trouxesse algum conforto familiar no retorno. Pegou, no quarto da irmã, a caixinha da pulseira, um pequeno caderno de anotações com sua caneta preferida e o celular, que, num toque acidental, se ligou, aparecendo na tela a mensagem não enviada:

— Letra S, de Saudade, vovô...

Num ato nervoso e não pensado, Rita clicou em enviar.

Chegando ao quarto da irmã no hospital, colocou o que tinha trazido sobre a mesinha de cabeceira e ficou tristemente olhando ao redor. Viu na meia altura da parede o aparelho que controlava as batidas do coração, numa linha azul que subia e descia ritmada, com um som de bip em cada pico. Viu a irmã com a fiação ligada ao corpo, com o rosto sereno e os braços por cima de uma coberta. Viu no pulso esquerdo, a pulseira. Viu os objetos que trouxera e colocara sobre a mesinha.

Por mais alguns instantes e com Rita de pé ao lado da cama, o silêncio foi quebrado por um sinal de mensagem chegando ao celular na mesinha. Intuitivamente, volta os olhos para o celular e consegue ler, logo abaixo de “Letra S, de Saudade, vovô” com o sinal de lido, que ela mesma havia enviado, em letras que vão surgindo e desaparecendo:

— Letra B, de Bem-vinda, Pico-pico!

Rita ouve alguém correndo e também o bip do aparelho ficar contínuo e, voltando-se para o aparelho, vê a luz azul se tornar horizontal. O coração parou. Rita desmaia.

 
 
 

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