LEMBRANÇAS
- Nei Damo
- 16 de ago. de 2020
- 4 min de leitura
Só lembro que eu estava, no meio da madrugada, num corredor de luz fraca com portas à esquerda e à direita, e a única saída era pelo salão em frente, de onde me chegavam vozes ameaçadoras.
De repente e logo ao meu lado, uma porta se abriu e uma das putas da zona me falou baixinho:
— Entre aqui, ligeiro. Deite comigo e não faça nenhum barulho. Vamos ficar quietos, aqui no escuro. E aproximando-se mais do meu ouvido, balbuciou:
— São bandidos. Quietos! Nós dois! A dona está conversando com eles para irem embora. Já mataram gente.
E mudos e imóveis ficamos por umas duas horas, sem sequer um farfalhar de lençóis, até que as luzes do prenúncio do dia atravessassem as frestas das paredes, feitas de tábuas sem mata-juntas. Um pouco mais claro e, com a aquiescência daquela mulher que me salvou sabe-se lá de que desastre, pulei pela janela e ganhei a rua, e me toquei para casa, onde cheguei com o sol despontando atrás dos matos dos Bertaso.
De outra feita, estávamos na mesma zona, eu e um amigo que hoje é médico, quando irrompeu uma briga medonha. O entrevero estava acontecendo ao nosso lado, coisa de uns três metros. Voava cadeira, porrete, garrafa e, minha memória auditiva ainda hoje me traz, bem vivos, os sons fortes do pisotear no assoalho de madeira. Devido à velocidade daqueles acontecimentos, ficava difícil pensar em qualquer atitude e pelo que me lembro, a pauleira envolvia quatro homens, dois contra dois. Coisa feia.
Não demorou e um conhecido nos avisou:
— Vocês são de menor e a patrulha está chegando. Se raspem daqui.
Nos esgueiramos por uma porta que estava perto e saímos em disparada por uma cancha reta que existia ali, ao lado da zona, eu numa raia e ele na outra. Enxergávamos o que estava à frente mesmo no meio da noite, pelo que deduzo ter acontecido este fato numa noite de luar, mas não notamos o final da cancha, e rolamos num barranco, sendo detidos pela vegetação no final do talude.
Dali a pouco, outro barulho e despenca lá de cima um cara, justamente um dos brigões. Ainda de sangue quente, quis, ali mesmo, puxar briga conosco. Com muita conversa o convencemos da inutilidade de uma contenda no meio do mato e que seria melhor nos dividirmos, cada qual para o seu lado. Achamos o rumo da cidade no sentimento e, mais uma noite ficamos, os dois magrelos e imberbes, fora o susto da pauleira, embasbacados com o rodopio dos casais ao som da música de gaita, violão, baixo, contrabaixo, saxofone, pandeiro e bateria. De quebra, a voz de um crooner negro, um carioca que trocou o samba do morro pela Dama de Vermelho e o Besa-me Mucho.
Mas antes que conhecidos me taxem de ter sido um adolescente libertino, é preciso que se situem numa Chapecó de sessenta ou setenta anos atrás.
O hotel da família, na sua parte dos fundos, tinha uma cocheira para cinco ou seis cavalos e na parte da frente, junto ao meio fio da rua, estava postado um tronco na horizontal, sustentado por dois outros nas extremidades. Servia para se amarrar os cavalos de cavaleiros que estavam ali para refeições, ou para resolver algum negócio nas proximidades. Se alguém lembrou de alguma cena de filme de faroeste, este alguém acertou, bastando trocar o letreiro de "Saloon" para "Hotel Avenida".
A cavalo ou a pé, a grande maioria dos homens andavam com revólver ou faca na cintura e, em qualquer disputa — baralho, bocha, corridas de cavalo, futebol, dívidas ou mulheres — havia sempre o risco de armas em punho. Basta uma rápida pesquisa nos jornais da época, como uma notícia de 12 de fevereiro de 1950, "Entre os torcedores que invadiram o campo, dois traziam seus revólveres na mão...", ou, da mesma década, a manchete de primeira página, em letras garrafais, "Entrevero de tiro e taio deixa quatro no chão". Taio, assim mesmo, o acaboclado de talho.
Este era o ambiente de Chapecó de sessenta ou setenta anos atrás.
Eu vi uma troca de tiros entre dois homens, um entrincheirado atrás de um poste no canteiro central da Avenida Getúlio Vargas, e outro protegido pela edificação do cinema que existia na esquina da Avenida com a Rio Branco. Eu vi, nesta mesma Rio Branco, dois homens com porretes na mão, à luz do dia, prostrarem um terceiro ao chão. Eu vi um homem morto numa mesa de bar, com um revólver na mão, ainda sobre a mesa. Eu vi meu próprio pai desferir um soco num homem que lhe havia sacado um revólver. Na minha mente ainda vejo, em câmara lenta, o homem desmoronando e, com o braço à meia altura, num espasmo nervoso, apertar o gatilho. Eu ouvi o estampido e vi a bala penetrar no chão, na minha frente, numa distância de uns três ou quatro palmos dos meus pés, pelo cisco levantado repentinamente, no piso de chão batido da calçada em frente ao hotel.
E era então neste ambiente que andávamos nós, um bando de cinco ou seis adolescentes com pequena diferença de idade e, tudo era bom, divertido e com risadas, menos nos relacionamentos com os mais velhos, da geração anterior. Estes nos espicaçavam, sempre na mesma toada: não se podia correr de uma briga, não se podia demonstrar medo, não se podia fugir de desafios e, se isto acontecesse, o coitado rotulava uma palavra na testa: cagão!
Tinha-se, entre os desafios, que perder a virgindade indo para a zona. Tinha-se que esconder-se no escuro do mato se a patrulha de policiais aparecesse, e ficar firme lá até que a mesma fosse embora.
Tinha que acontecer, na zona de meretrício, a primeira vez. Aquela primeira vez que ninguém esquece: a primeira gonorreia. A minha geração escapou do suplício do tratamento pelo surgimento da penicilina, mas aquela geração anterior, que diuturnamente nos provocava, esta passou por este trauma. E entre eles mesmos, ao saber que um companheiro tinha feito o tratamento, que pode ser visto na Internet de forma humorística, bastando acessar "Agildo Ribeiro explica o antigo...", queriam logo saber do farmacêutico, que tratava de todos os homens da cidade:
— O cagão chorou? O cagão chorou?
Aos quinze anos terminei o primeiro grau e não havia segundo grau em Chapecó, previsto para chegar um ano depois, e então as opções eram estudar fora ou esperar. Meu pai colocou as duas alternativas e pediu que eu decidisse: eu decidi por estudar fora.
Depois, ao pensar na minha decisão de me separar dos amigos e deixar aquela cidade que eu amava tanto, eu chorei baixinho. Escondido, para que não me chamassem de cagão.
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