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DOS MISTÉRIOS PASSANTES

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 25 de abr. de 2020
  • 6 min de leitura

Sentado ao lado da calçada de uma praça, Millôr Fernandes escuta e registra as conversas entrecortadas das pessoas que passam em sua frente, conforme um dos “O Pif Paf”, publicado na antiga revista O Cruzeiro.

Trazidas para os dias de hoje, e mal comparando, as conversas do Millôr - Enfim, um escritor sem estilo (como ele mesmo se denominava no "O Pif Paf"), seriam mais ou menos assim:

— ... Menina, Nossa Senhora! Quando abri meu Zap, me borrei de susto!...

— Credo! Não me diga que era ela!

— Pior que era! E encheu a mensagem com aquelas figurinhas de facas...

— ... E então ele levou a mão no meu joelho...

— Ai meu Deus! E o que você fez?

— Eu não sabia, mas dizem que ele...

— ... Cara! De repente entrou no meu escritório o supervisor, assim, sem bater...

— O Jorge? Mas ele sempre entra sem bater...

— Sim, mas ele estava com o meu computador debaixo do braço e uma faca na mão...

Com os “Mistérios Passantes”, o leitor fica com as continuações e um sorriso nos lábios, sem saber para que lado levar o pensamento. Parece ser uma coisa, mas parece ser outra, e assim vai.

Parece mas não é. Parece, mas não é. Parece. Mas não é.

1 - Ubaldo sentou-se à mesa de um bar que dava de frente para uma rua barulhenta, e rememorou os acontecimentos dos dois últimos dias. Não poderia dizer que foram dias sem sobressaltos, muito pelo contrário, porque foram até apavorantes.

As batidas na porta do apartamento, por exemplo, tarde da noite, e ao abrir a porta... Ninguém! Rapidamente e com medo fechou a porta e refugiou-se no quarto. Depois, na noite seguinte e na madrugada, um apito: uma mensagem? Um sinal para algum comparsa? Um pedido de socorro? Não. Não tinha jeito de pedido de socorro, mas nada mais aconteceu no silêncio da noite, porque ficara na escuta até o amanhecer.

De onde estava sentado no bar, pediu uma cerveja ao garçom, e a tomou pausadamente, planejando as próximas ações. Coisa simples, apenas iria para casa e sentaria na frente da televisão. Mais simples impossível, e só tinha que passar por uma ruela que ele não gostava. Estreita, com calçadas estreitas. E silenciosa. Silenciosa demais...

Pagou a conta e saiu para a rua, só aí notando que já estava escurecendo. Caminhou por algumas dezenas de metros e entrou na ruela, apreensivo. Mais um pouco caminhando na ruela e ouviu passos... Ai meu Deus, são passos mesmo! Ubaldo apressou a passada e o som dos passos também o acompanhou... Correu, e os passos também correram, mas ainda bem que estava perto de desembocar noutra rua movimentada. Esbaforido, chegou à rua e teve coragem de olhar para trás e, não havia ninguém ali.

Andou até um bar, entrou e sentou-se. Calma, calma, enquanto organizava os pensamentos. Indo por partes: as batidas na porta poderiam ter sido as batidas de um entregador de pizza no apartamento ao lado. A vizinha atendeu, abriu a porta e o entregador entrou, enquanto Ubaldo abria a sua porta. Apavorado, fechou a porta. O apito na madrugada era do novo guarda noturno, recentemente contratado pela associação do bairro, e os passos que se ouvia na ruela, ao sair da rua barulhenta, eram sons dos seus próprios passos.

Agora está tudo explicado, pois Ubaldo, caros leitores, é ‘Ubaldo, o paranoico’, aquele personagem do Henfil.

Mas tem um cara ali naquela mesa olhando. E aquele outro lá no fundo também está olhando. Acho melhor correr... Corra, Ubaldo, corra...

2 - Meu nome é Edgar e estou assustado, com o coração parecendo saltar para fora do peito. Não sei como vim parar aqui, nesta situação, amarrado e pendurado de cabeça para baixo. Estou dentro de uma caixa d’água grande. Digo que é uma caixa d’água porque as paredes estão molhadas e existe um cano que deve ser por onde a água entra, e que está mais ou menos na metade da altura entre minha cabeça e o fundo deste tanque. Meus pés estão amarrados e presos entre duas tábuas que se apoiam nas bordas do tanque, que é por aonde alguém chegou para me deixar nesta posição, e que eu não lembro nada, e só sinto esta angústia a me corroer. E sinto medo. Muito medo. Um medo terrível.

Dos meus gritos de socorro, só escutei de retorno a minha própria voz, reverberando pelas paredes do que parece ser um grande galpão abandonado. De tempos em tempos me vem uma vontade de chorar desesperadamente.

De repente, a água começa a jorrar pelo cano. A angústia aumenta. Alguém, em algum lugar, abriu uma torneira e entendi o propósito. Quando a água chegar ao meu nariz e na minha boca, eu vou morrer afogado. Isto é uma tortura, e vai ficar cada vez pior.

A água começou a subir e quando chegar perto do meu nariz, talvez eu possa flexionar os joelhos e me erguer, o que não vai adiantar nada, porque vai ser por pouco tempo e a exaustão vai chegar e, e eu vou me entregar. Não tem jeito.

A água continua a subir, e já está perto do cano por onde ela está jorrando e o barulho é um tormento. Pronto. O som mudou porque a entrada da água ficou submersa, mas esta mudança me trouxe uma esperança, porque à medida que a água sobe, vai aumentando a pressão da coluna de água sobre o cano por onde a água entra. Vai existir uma altura de água onde a pressão desta altura vai igualar a pressão da entrada de água, e o nível vai estabilizar. Pode ser a minha salvação.

A água continua a subir, mas noto que agora ela sobe mais devagar. Mas sobe, e está perto dos meus cabelos. Mais um pouco e já molha o topo da minha cabeça e, intuitivamente, tento me erguer, flexionando os joelhos. Canso e apavorado eu desisto, e a água cobre meus ouvidos. Ouço o som da água entrando na caixa, mas é um som baixo, quase parando. Meu Deus, me ajude! E o som diminui até parar. Estou salvo, com o coração na mão. E por enquanto...

Na verdade, meu nome completo é Edgar Allan Poe, e estou num centro espírita, numa sessão de psicografia, ditando um conto de terror para mais um livro meu. Não deixem de comprar para saber o que vai acontecer neste conto. Obrigado.

3 - Eu faço parte de uma equipe de mineração e meus companheiros me chamam de Mestre. Estamos sempre atrás de uma rocha chamada kimberlito, que é a rocha mãe do diamante. O kimberlito se apresenta na natureza como uma gigantesca cenoura enterrada no solo. Milhões de anos e a erosão foi comendo a parte de cima do kimberlito, e espalhando diamantes que foram levados pelas águas Os diamantes não se degradam nunca, e é por isto que dizem aquela famosa frase, “apenas os diamantes são eternos”.

Todos aqueles que viram os trabalhos numa mina de diamante ficam impressionados com a dureza do kimberlito, e com aquele monte de equipamentos funcionando com fúria atrás do brilho da pedra preciosa, que é visto longe.

Nossa mineração é aluvionar, e trabalhamos basicamente com picaretas e enxadas. Como eu falei, meus companheiros me chamam de Mestre, que é mesmo o meu nome, e somos uma equipe de sete membros. Os outros são Zangado, um sujeito sempre brabo, Atchim, Feliz, Dengoso, Soneca e Dunga, o mais novo.

Tem ainda lá em casa uma moça branca como a neve, que arruma as camas e faz a comida. Nesta história, dizem ainda que tem príncipe. Se tiver príncipe, tomara que ele nunca apareça por lá...

4 - Me sinto cansado e preciso arrumar um lugar para descansar o esqueleto, como dizem. Já são muitos os dias que estou na estrada, e dirigir por bastante tempo, afeta e judia todo o corpo.

Preciso de um lugar, nem que seja uma casa, se no próximo lugarejo não tiver hotel ou pousada. Uma casinha, assim, construída com muito capricho, com uma rede, e um teto que faça sombra no chão, que o calor está de rachar. Hoje pela manhã tinha cerração, e como se dizia antigamente, “cerração baixa, sol que racha”. Está certo este brocardo.

Pronto. Ali está um lugarejo e acho melhor já ir procurando uma casa, que de cabeça eu sei que já ouvi o endereço, e acho que foi no rádio. Dizia que era uma casa muito engraçada. Meio complicado isto, porque parece que nem penico não tinha ali. E se eu precisasse fazer xixi, eu teria que ir naquelas casinhas de muito tempo atrás, com tramela na porta. Me lembrei agora que nem se podia deitar na rede.

Pior é o endereço, que está difícil de achar a bendita rua. Acho melhor perguntar para algum morador e talvez ele saiba onde é a rua dos bobos, número zero, que é o lugar de uma casa assim, feita com muito esmero...

 
 
 

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