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CABELOS BRANCOS

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 26 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Boné na cabeça, eu estava pronto para sair no forte sol da tarde. Ao levar a chave na porta, senti um incômodo num dente e voltei para o banheiro em busca de fio dental. Sorte, porque eu tinha esquecido de apagar a luz. Passando o fio entre os dentes, olhei-me sem querer no espelho e notei fios escuros nos pelos do rosto. Deve ser impressão, pensei. Apaguei a luz e me dirigi para a porta de saída do apartamento.

Noutro dia e numa mesma situação em frente ao espelho, noto novamente os fios escuros no rosto, logo eu, que tenho já faz tempo, uma barba branca de Papai Noel. Mas, a julgar pela cor dos fios, sou obrigado a crer que eu estou remoçando. Sem pensar muito, ajeito o boné e vou para a sala.

Depois de duas taças de vinho, comecei a acreditar que eu estava mesmo a remoçar e voltei ao banheiro: Bingo! Mais fios escuros.

Fui para a terceira taça de vinho, já pensando que isto ia ser um problema. Não ia ser fácil remoçar. Primeiro, para que ninguém soubesse, eu teria que pintar meus cabelos para que continuassem brancos e, nem sei se existe tintura para isto. A única vez que ouvi a respeito foi quando um primo me comunicou a vinda prematura de um neto:

— Cara! – disse-me ele: vou ser avô! Vou ter que pintar meus cabelos de branco!

Sei que existe tintura para cabelos grisalhos, mas nada que não se possa resolver numa boa farmácia de manipulação. Mas e as rugas do rosto? Isto vai ser mais difícil, mas posso me internar numa clínica para simular cirurgias plásticas.

Por um tempo posso ir levando, e me lembro dos meus exames médicos. Depois de um tempo a taxa de glicose vai baixar. Triglicerídeos vai baixar. Colesterol ruim vai baixar. A pressão arterial vai baixar. O ácido úrico vai baixar. Mas, UAU! A testosterona vai subir!

A próstata, esta glândula que as mulheres não têm, vai diminuir de tamanho e assim, vai deixar de estrangular a uretra e eu vou voltar a mijar longe. Que bom.

E também me livra da operação, que chega para todos os homens, se aquela figura sombria com uma foice — que aliás nem é foice, é um gadanho — não nos abater antes por algum outro mal.

E o meu coração? Vou ter que simular exaustão antes do tempo no exame de esforço na esteira, e ficar de olho no médico que me acompanha neste exame. Qualquer coisa, digo que estou fazendo academia. Faço esteira uma vez por ano, e no ano passado aguentei sete minutos. Não vai ser difícil passar por esta prova. Quando chegar perto dos sete minutos de esteira vou fingir uma exaustão.

O vinho está indo depressa, e vou pegar mais uma taça. Acho que é a quarta. Melhor pegar água junto.

Agora me vem uma coisa mais complicada. Por um ano ou dois, talvez três, eu engano. Cinco nem pensar, porque as diferenças vão ficar muito evidentes.

Eu teria que mudar de cidade e, em mais alguns anos, mudar de identidade. Novo nome com novos documentos, e isto faria de mim um fora da lei. Logo eu, que fui um CÊ - DÊ - EFE, assim mesmo, em maiúsculas, a vida inteira. E tem mais um problema: dinheiro. Vai ser preciso muito dinheiro. Batalhei uma vida para ter dinheiro na velhice e agora vou ter que batalhar uma vida e meia para ter dinheiro na juventude. Dá para entender isto? Mesmo dinheiro vai ser difícil ganhar, porque não posso nem apresentar currículo. Complicado.

Vou ter que pensar nisto noutra noite, e não posso me esquecer de comprar mais vinho.

Pensando sobre o que está acontecendo comigo, lembrei do filme "O Curioso Caso de Benjamin Button". Não vi o filme, mas li sobre ele. Conta a história de uma pessoa que nasce velha e vai remoçando com o passar do tempo. Como no filme, eu também estou remoçando, com a diferença que eu conheço todo o meu entorno, isto é, eu sei tudo de uma vida inteira e o Benjamin do filme começa bebê. No meu entorno estão os meus amigos e meus amores antigos, por exemplo. Sobre isto quero dizer que a percepção que temos deles é diferente da percepção que eles tem de nós, quando um afastamento longo aconteceu. O modo de vida com seus sabores e dissabores, com novos relacionamentos, acabam por apagar os fatos passados da memória de cada um, com maior ou menor intensidade, de modo que assim são diferentes as percepções individuais sentidas num encontro atual. Porém, o amor ou o amigo aconteceu, e o que importa é o sentimento pessoal de cada um. Vejam uma pequena parte de um poema de Vinicius de Morais:

"Se alguma coisa me consome e me envelhece, é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam e talvez nunca vão saber que são meus amigos!"

O poeta diz assim, porque amigo não se faz, amigo se reconhece.

Se discorro sobre este tema é porque estou na quinta taça de vinho e, porque há pouco me ocorreu que meus amigos mais novos partirão antes de mim, e eu vou ver também meu filhos partirem. Que angústia isto!

Mas em João 8:32, se lê "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" e, do vinho se diz um antigo brocardo: "In Vino Veritas".

Na Bíblia e no vinho está a verdade, e a verdade é que meus pelos do rosto ficam escuros porque quando estou de boné me olhando no espelho, com a luz acesa do banheiro, faz sombra no meu rosto. Só isto. Ainda bem.

 
 
 

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