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ARMÁRIOS

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 12 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Antes dos edifícios, toda moradia tinha que ter, além de sala, quartos, banheiro e cozinha, um sótão, porão, despensa e um quarto escuro. No sótão ficavam coisas em desuso, mantimentos a granel e uma eventual cama. No porão, apetrechos de capina, roçada, horta, carpintaria, algum barril de vinho, queijos em prateleiras e salames pendurados.

A despensa tinha que ser anexa à cozinha, porque ali se guardavam mantimentos de uso diário. Debaixo da escada que sobe ao sótão, se fechava um espaço e se colocava uma porta. Era o quarto escuro. Não raro, um quarto escuro poderia surgir durante a construção, em algum espaço sobrando sem janelas. Bastavam mais duas paredes e uma porta, e estava pronto um canto para roupas de cama, principalmente. Servia também para amedrontar crianças:

— Se você não ficar quieto, eu te tranco no quarto escuro!

Em quase todas as peças se punham armários nas paredes, e estes podiam ser grandes ou pequenos, mas sempre com estantes, eram fechados e numa profundidade de uns quarenta centímetros.

Armário era um termo do exército, e designava o lugar de guarda das armas. Aos poucos o armário ficou sendo para guardar qualquer coisa e, esta mesma coisa poderia ser retomada no dia seguinte, no mês que vem, no outro ano, ou esquecida.

— Manhê! Cadê minhas chuteiras?

— Acho que estão no armário do porão!

Ou:

— Como o tempo passa! Já faz três meses que o vovô morreu.

— Meu Deus do Céu! A urna com as cinzas! Esqueci no armário do sótão!

Deixa-se de tudo no armário, e no armário se escondem coisas. Quer esconder algum objeto? Bote na estante bem de baixo, num canto, atrás de uma caixa qualquer de papelão.

Agora abra um armário, veja com atenção cada objeto, e analise: você verá coisas guardadas ontem, coisas deixadas ali há muito tempo, coisas que estavam esquecidas e coisas que você nem lembra mais o que é aquilo. Agora compare com o seu subconsciente, a parte mais funda do cérebro, aquela que guarda as memórias não resgatadas de imediato ou facilmente. Pense um pouco e verá que qualquer um vai chegar à mesma conclusão. O subconsciente não passa de um armário da vida. Tudo que se viveu está guardado neste armário, das memórias mais sutis até aquelas que você não quer contar nem para o seu psiquiatra.

— Sabe o Júnior?

— O filho da dona Ester? Aquele que namora uma uns dois meses e termina?

— Ele mesmo, que dizia que não ia se casar. Foi visto na praça com um namorado.

— Assumiu?

— Sim, e estava na hora. Enfim saiu do armário.

Também do tempo de antes dos edifícios, uma das diversões dos adolescentes era a empulhação. Consistia numa brincadeira de perguntas e respostas para rir dos outros, caçoar, deixar os outros em má situação.

— Conhece o Mário?

— Que Mário?

— Aquele que te comeu atrás do armário!

A empulha não tinha lógica, porque armário não tem “atrás”. O que tem atrás do armário é sempre uma parede, e comer o Mário dentro do armário também não dava, por causa das prateleiras e do exíguo espaço de quarenta centímetros. O Mário da historinha está ali por causa da rima e da profusão de Mários de antigamente, mas tanto o Mário como o Júnior, ligados a armários, estão é ligados à sexualidade no subconsciente, por mais que relatos sejam simples comentários ou simples brincadeiras.

A terceira conotação vem do inglês americano — skeleton in the closet — ou, cupboard, no inglês da Inglaterra, e já em uso no Brasil. Dentro da linguagem da psicologia, significa algum fato constrangedor do passado, que a pessoa não quer que venha à tona. Exemplos desta situação:

— Aquele cara ali tem muitos esqueletos no armário.

— O caso da Rô vai acabar sendo mais um esqueleto no armário.

— Aquele romance antigo que foi muito bom, acabou sendo um tremendo esqueleto no armário.

Os esqueletos são populares no dia dos mortos do México, na memória dos povos antigos, nas histórias em quadrinhos ou nos desenhos animados, e talvez chegue até a publicidade, como a de um consultório de psiquiatria, que poderia ser assim:

— Traga até nós o seu esqueleto no armário. Daremos um jeito nele!

Ou no consultório de um dentista:

— Se você for o esqueleto no armário de alguém, pelo menos tenha o sorriso perfeito!

Existe, em algum lugar, um restaurante que se relaciona com o assunto esqueletos no armário, e está instalado numa casa antiga, no alto de uma colina, onde dormem, numa das chaminés, corvos como os de Poe.

Ao chegar, o cliente é conduzido a um recinto privado com uma cadeira e uma tela de televisão, onde são apresentados doze tipos de comidas, frias e quentes. O manual de instruções diz que ele deve clicar em todos, um a um, e ao fazer isto, a tela libera junto com a imagem colorida, o cheiro da comida respectiva. O cliente deve montar o seu prato escolhendo cinco comidas e adicionando dois temperos de seis apresentados.

Montado o prato e no tempo de vinte minutos, a comida será servida, acompanhada de uma bebida, escolhida entre oito dispostas sobre a mesa. O item top do restaurante é a “sobremesa secreta”, indicada num charmoso envelope lacrado.

O que o cliente não sabe, é que neste tempo, tempero e bebida, bem como cores e disposição das comidas no prato, formando um desenho, como os desenhos do Teste de Rorschach, são analisados por uma equipe de psiquiatras.

Repimpado com a ceia, o cliente é instado a abrir o envelope com a numeração do corredor e do armário e, sempre a parceira, ela própria buscar sua sobremesa, o clímax da noite.

Ele também não sabe que a sobremesa foi feita de acordo com a análise do grupo de psiquiatras, e que a mesma irá ter relação com um esqueleto no armário, do por hora, satisfeito cliente. Corre ainda a notícia que alguns recintos do renomado restaurante são sinistros, e que coisas misteriosas pairam na atmosfera ao redor daquela casa antiga, mas os clientes, apesar do preço, sempre voltam.

Com o charmoso envelope na mão, a pessoa se dirige ao corredor indicado e nota que o mesmo vai ficando escuro e um tanto lúgubre, pelas estatuetas incrustradas nas paredes.

Ao passar por um mordomo, este lhe diz, baixinho no ouvido, retirando-se às pressas:

— Madame, a sobremesa é opcional...

 
 
 

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