A UBER E EU
- Nei Damo
- 6 de abr. de 2020
- 4 min de leitura
Ao premer o dedo no aplicativo da Uber, a pergunta salta aos olhos: “para onde?”.
E eu, Nei Damo, morador de Florianópolis, no Continente Americano, respondo: “Rodoviária”.
Ellen Brooks, em Liverpool, diante da mesma pergunta, responde “home”, enquanto cantarola “Hey Jude”, porque afinal, ela está no berço dos Beatles, no velho Continente Europeu.
Ellen e eu somos duas das 75 milhões de pessoas dos cinco continentes que baixaram o aplicativo em seus celulares, e neste exato momento, algumas milhares de pessoas estão recebendo a resposta ao endereço fornecido:
“A localizar três motoristas perto de si”
O interregno de tempo entre a troca de mensagens foi de menos de um décimo de segundo, o tempo da luz ir e voltar até a Califórnia, onde, automaticamente, se processam todos os trâmites de uma corrida de táxi.
A Uber é a maior empresa de táxis do mundo e, no entanto, em seu patrimônio, não possui um único táxi.
Três carros recebem tua posição, e um deles clica no botão “eu vou”, tipo os jurados do The Voice Brasil.
Se nenhum dos três clicar, os computadores acionam mais três, até que haja um motorista que aceite. O clique de aceite vai até a Califórnia e volta informando o nome do motorista e sua pontuação, a marca do carro e a placa, além de aparecer no celular o carro se movimentando e o tempo de chegada até a posição de espera do futuro passageiro.
— O Senhor é o Nei?
— I beg your pardon. Are you Ms Brooks?
E somente no momento em que o condutor do veículo clica “passageiro a bordo”, é que ele toma conhecimento do destino e, a partir deste ponto, o impessoal torna-se pessoal, com a corrida sendo guiada pelo GPS.
O condutor não é mais o profissional taxista que geralmente diz: “faz quarenta anos que estou no táxi”, ou, “peguei as cinco e vou trocar de turno as onze”. O condutor é, nesta nova situação, como uma pessoa que você encontra numa festa, onde você não sabe do que se trata a festa, como também desconhece todos os convivas.
— Boa tarde
— Boa tarde. Muito tempo de Uber?
— Desde o golpe que, coordenado pelos imperialistas ianques, a elite brasileira destituiu a Dilma. Previsível, com a descoberta do pré-sal. Era visto que a direita internacional, com os Estados Unidos à frente, colocando na costa brasileira a quinta frota naval...
— Petista, sindicalista, ou professor da USP?
— Os três!
— Boa tarde
— Boa tarde. Meu nome é Osmar e nóis vamo, nóis vamo agora pra praça da igreja do centro. Está marcado aqui. Me desculpe, é que sou novo neste negócio.
— Sem problemas. Está há tempo em Florianópolis?
— Treis mês. Eu era caminhoneiro e minhas filhas estudam aqui, e eu peguei este troço pra ajudar em casa.
— E está gostando?
— Uma maravilha. Divertido. Converso que Deus me livre. Faceiro!
— E tu é de onde?
— Guarapuava.
— Mas veja só! Eu atendo uma empresa lá...
— Na verdade, é lá de perto. Eu sou do Candói.
— Eu conheço o Candói. E no Candói eu conheço a Maristela.
— A Maristela? Foi minha professora!
— Chegamos. Quanto foi a corrida?
— 12,50
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— EI! EI! SE ENCONTRAR A MARISTELA FALA PRA ELA QUE TU ENCONTROU O OSMARZINHO!
— Bom dia
— Bom dia. Ops, meu celular... Alô?...Sim...Sim...Certo...Beijo.
— Mulher?
— Sim
— Quer discutir a relação? A exteriorização de conflitos internos leva à cura, ou ao alívio de tensões, segundo Freud e também por Young. O sentimento de...
— Psicólogo ou psiquiatra?
— Psiquiatra. A corrida vai levar, diz aqui no celular, 45 minutos. O tempo de uma consulta.
— Não, obrigado
— A consulta é brinde. Em todo caso este é o meu cartão. Se precisar...
— Boa tarde
— 良い午後 -市内中心部に行こう
— 私は物語を語ります
— これはとても面白いです
— HAHAHAHAHAHAHAH
— HIHIHIHIHIHIHIH
— Bom dia
— Buenas! Se achegue! Aceita um mate?
— Não, obrigado. Gaúcho de onde?
— Dom Pedrito. Nas franjas do Rio Grande, pras banda do Uruguai. Música? Escolha a gosto. Tem aí Mano Lima, Xirú Missioneiro, Teixerinha,...
— Não, obrigado. E como veio para cá? E por que no Uber?
— Pôs que me fui subindo, subindo, e o trabalho prum peão de estância foi este que eu achei, mas que já está me dando uma gana de voltar pros pago.
— Saudade?
— Vivente de Deus! Confesso que sim. A saudade vem de mansinho, como quem não quer nada, mas entra fundo pelas costelas do lado esquerdo, e se aloja entre as sístoles e diástoles deste velho coração gaudério. E na manhazita, assim de relancina, eu lembro de um cheiro que me chega a brotar as lágrimas nos olhos! Eu sinto a saudade do cheiro de bosta dos cavalos!
— Boa noite
— Ooooii
— Bom este teu perfume.
— Chanel número cinco. Sabia que quando perguntaram para a Marilyn Monroe o que ela vestia ao dormir, ela...
— Disse que dormia só com uma gota de Chanel número cinco. Foi depois deste episódio que o perfume ganhou fama mundial. Mas, este teu, é legítimo?
— Ham... Hum... paraguaio, mas é bom, não é?
— Bom. E o que tu fazia antes do Uber?
— Hum... Eventos! Eu fazia eventos. Mas aqui é melhor. Gosto do Uber. Sabia que a qualquer hora tu pode mudar a rota? Tipo assim: se quiser entrar naquela rua ali à esquerda, é só clicar aqui. “Mudança de rota”.
— Entendi. Por exemplo, se eu quiser dobrar ali à direita, onde tem aquela placa escrito “Motel”, pode?
— Sim!
— Dá o sinal e entra!
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